12 junho 2008

CICLO SECO

Todo mundo conhece ciclo seco, a maioria até já passou por ele. Alguns mesmo vivem desde sempre dentro dele, achando que isso é vida e eternizando o que, por ser ciclo, deveria também ser transitório. É preciso acreditar que passa, embora quando dentro dele seja difícil e quase impossível acreditar não só nisso, mas em qualquer outra coisa. Não que ciclo seco não tenha fé, o que acontece é que não podendo ver o que não é visível, fica limitado ao real.

Antes de ir em frente, é importante dizer que ciclo seco nada tem a ver com as estações do ano. É coisa de dentro do humano, não de fora, e justamente por isso não tem nenhum método: vem quando não é esperado e vai quando não se suspeita. Ciclo seco não desaba de repente sobre alguém; chega aos poucos, insidioso, lento. Quando se percebe que se instalou, geralmente é tarde demais. Já está ali. É preciso atravessá-lo como a um deserto, quando se está no meio e a água acabou. Por ser limitado ao real, o ciclo seco jamais considera a possibilidade de um oásis ou de uma caravana passando. Secamente, apenas vai em frente.

Porque o real do ciclo seco são ações, não pensamentos nem imaginações. Tanto que, visto de fora, não é visível nem identificável. Não se confunde com “depressão”, quando você deixa de fazer o que devia, ou com “euforia”, quando você faz em excesso o que não devia. Em ciclo seco faz-se exatamente o que se deve ou não, desde escovar os dentes de manhã ou beber um uísque à tardinha, mas sem prazer. Nem desprazer: em ciclo seco apenas se age, sem adjetivos. A propósito, ciclo seco não admite adjetivos — seco é apenas a maneira inexata de chamá-lo para que, dando-lhe um nome, didaticamente se possa falar nele.

E deve-se falar dele? Quero supor, entusiástico, que sim. Mas não tenho certeza se dar nome aos bois terá alguma serventia para o dono dos bois ou sequer para os próprios bois — e essa é uma reflexão típica de ciclo seco. Mas vamos dizer que sim, caso contrário paro de escrever já. E falando-se dele, diga-se ainda que ciclo seco não é bom nem mau, feio ou bonito, inteligente ou burro (...) embora possa dar uma impressão errada a quem o vê de fora, ávido por adjetivar.

Ciclo seco, por exemplo, não se interessa por nada. Pior que não ter o que dizer, ciclo seco não tem o que ouvir, compreende? Fica na mais completa indiferença seja ao terremoto no Japão ou à demissão de Vera Fischer. No plano pessoal, tanto faz ler ou não ler um livro, ir ou não ao cinema — ciclo seco é incapaz de se distrair, de se evadir. Fica voltado para dentro o tempo todo, atento a quê é um mistério, pois que pode um ciclo seco observar de si mesmo além da própria secura, se não há sequer temporais, ventanias, chuvaradas? Nesse sentido, ciclo seco é forte, porque nada vindo de fora o abala, e imutável, porque de dentro nada vem que o modifique.

E nesse sentido também é antinatural, pois tudo se transforma e ele não, simulando o eterno em sua digamos, i-na-ba-la-bi-li-da-de. E sendo assim, com alívio vou quase concluindo, pode se deduzir que... Não, não se pode deduzir nada. Só que passa, por ser ciclo, e por ser da natureza dos ciclos passar. Até lá, recomenda-se fazer modestamente o que se tem a fazer com o máximo de disciplina e ordem, sem querer novidades. Chatíssimo bem sei. Mas ciclo seco é assim mesmo.

Todo mundo tem os seus, é preciso paciência. E contemplá-lo distante como se se estivesse fora dele, e fazer de conta que não está ali para que, despeitado, vá-se logo embora e nos deixe em paz? Eu, francamente não sei. Ainda mais francamente, nem sequer sinto muito.
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Caio Fernando Abreu em "Pequenas Epifanias"

9 comentários:

Anônimo disse...

oi clara, adorei o texto e adorei muito mais ainda o seu blog. encontrei na página da janaína e linkei na minha página. bjs.

Anônimo disse...

O que me pergunto é : será que a maior parte da nossa vida é um ciclo seco? Porque eu acho que sim. Pensando em euforia ou disforia, todo o resto é seco, ou seja, a maior parte da própria existência humana( pelo menos da minha, que tenho extremos curtos mas intensos)

Jana disse...

Eu já postei isso, tu sabe, então eu entendo perfeitamente essa coisa de se fazer apenas o necessário, sem prazer algum...

Bem, eu vou dar um tempo, do blog de tudo, estou aquela bomba (do ap) e eu to completamente sem cabeça, e sinceramente, tomada pelo desespero. Merda pouco é bobagem.

A gente se fala, por ai, quando e se as coisas por aqui se ajeitarem

beijos

eurídice disse...

passei para ler meus atrasados e me surpreender uma vez mais com você e com caio f. (de fodástico) abreu.

sempre me sentindo em débito contigo, tri. talvez pelos e-mails irrespondidos, talvez por todas as tardes de ipanema que deveríamos ter tido e não tivemos.

um brinde ao delicado da vida!

beijos meus e saudades sempre.

p.s.: fiz meu "eu" lá na biroska.

Anônimo disse...

Texto excelenteeeee!!!
Adorei seu jeito de escrever, e continuarei lendo!
Grande bjo!!

Anônimo disse...

Caio era genial demais. Compreendo exatamente o que ele está descrevendo, aliás, acho que estou num desses agora mesmo!

Oksana disse...

Excelente escolha de texto... A descrição é perfeita! Eu acho que acabei de atravessar um ciclo desses. Pelo menos é o que parece, porque estou conseguindo imaginar, projetar para o futuro, coisa que até poucos dias, perdida no meio do deserto, eu pensava que não era mais possível. A aridez sempre parece eterna no meio do ciclo, e eis que, de repente, garoa.
Beijos

Talita Corrêa disse...

Já passei por isso, as vezes vem a tona, mas não gosto. Gosto do prazer de fazer o que me faz bem...

Ahhhhhh... usei todos aqueles verbos do post passado e fiz o meu post... como tinha visto no blog da Jana coloquei que copiei dela, rs.

Bjo

Talita Corrêa disse...

Já passei por isso, as vezes vem a tona, mas não gosto. Gosto do prazer de fazer o que me faz bem...

Ahhhhhh... usei todos aqueles verbos do post passado e fiz o meu post... como tinha visto no blog da Jana coloquei que copiei dela, rs.

Bjo