26 março 2008

DIES IRAE

(título alternativo: Hoje eu acordei meio totalitária!)

Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam.
Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece. E nem ao menos posso fazer o que uma menina semiparalítica fez em vingança: quebrar um jarro. Não sou semiparalítica. Embora alguma coisa em mim diga que somos semiparalíticos. E morre-se, sem ao menos uma explicação. E o pior - vive-se, sem ao menos uma explicação. E ter empregadas - chamemo-las de uma vez de criadas - é uma ofensa à humanidade. E ter a obrigação de ser o que se chama de apresentável me irrita. Por que não posso andar em trapos, como homens que às vezes vejo na rua com barba até o peito e uma bíblia na mão, esses deuses que fizeram da loucura um meio de entender? E por que, só porque eu escrevi, pensam que tenho que continuar a escrever? Avisei a meus filhos que amanheci em cólera, e que eles não ligassem. Mas eu quero ligar. Quereria fazer alguma coisa definitiva que rebentasse com o tendão tenso que sustenta meu coração.

E os que desistem? Conheço uma mulher que desistiu. E vive razoavelmente bem: o sistema que arranjou para viver é ocupar-se. Nenhuma ocupação lhe agrada. Nada do que eu já fiz me agrada. E o que eu fiz com amor estraçalhou-se. Nem amar eu sabia, nem amar eu sabia. E criaram o Dia dos Analfabetos. Só li a manchete, recusei-me a ler o texto. Recuso-me a ler o texto do mundo, as manchetes já me deixam em cólera. E comemora-se muito. E guerreia-se o tempo todo. Todo um mundo de semiparalíticos. E espera-se inutilmente o milagre. E quem não espera o milagre está ainda pior, ainda mais jarros precisaria quebrar. E as igrejas estão cheias dos que temem a cólera de Deus. E dos que pedem a graça, que seria o contrário da cólera.
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Clarice Lispector em "Aprendendo a Viver"

N.A: sim pessoas, mais do mesmo... ando tão monotemática... hohoho

3 comentários:

Anônimo disse...

Caraca, se não é um bocado do amargo, rs
Lembro de amiga que dizia: "arruma um tanque pra lavar roupa que tu esquece essas bobagens!" rs

Bjs e reproduzidas invenções!

Jana disse...

Eu postei um trecho desse livro essa semana... Impressionante nossas semelhanças...

mas sei lá eu acho que sei detalhes de mais pra comentar aqui sem ser escancarada... mas concordo, a gente espera das pessoas em troca do nosso amor, algo errado, já que nós é que ofertamos...

Beijos!

Guilherme Ribeiro disse...

Olá, Clara, como vai? Obrigado por visitar-me e deixar uma mensagem. Adorei a estética de seu blog, o título e (incompletude) sua definição. E, se me permite, que bom que permaneces em aberto. Já imaginou alguém que consegue se definir?
Enfim, que seu estado de espírito mantenha-se sempre febril!
Abraços e mais uma vez obrigado pela gentileza!